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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

De mãos dadas com a rua



Não têm leis nem regras paternais. A rua é a sua melhor amiga, a droga a companheira persuasiva que não os abandona por nada deste mundo. São meninos. São amantes de um prazer envenenado. São simplesmente reais.

Tem um sonho. Tal como todos os meninos da sua idade. Há noite, imagina que tem à sua espera uma cama quente, um copo de leite, acompanhado de um beijo da mãe. Afectos antes de fechar os olhos para dormir. Ilusões meras ilusões, no pensamento desta criança que mal conhece a palavra afecto.
A realidade é bem diferente da sonhada. Cada noite… um lugar diferente para descansar o corpo e a mente. Pernoitar à porta de uma loja chinesa ou nas escadas de uma igreja. Não há lençóis ou almofada. Tenta-se “gostar” do chão frio, tenta-se conviver com o lixo, a sujidade que “respira” à sua volta.
Não há bonecos de peluche ou soldadinhos de chumbo dispostos pelo “quarto”, alias, as paredes são invisíveis. Há somente o silêncio obscuro da noite que o deixa de sentinela. O perigo espreita em cada esquina, porta, travessa ou ruela. Quando reza não pede bicicletas, playstations ou uma simples bola de futebol, pede antes ao tal “Deus superior” que consiga acordar de manhã, para sobreviver, mais um dia, num mundo, onde a única lei é “não se deixar abater”.

A história de um menino de rua. Podia ser igual como tantas outras. Mas não é. As próximas linhas têm a ambiguidade de relatar a “perversidade” de menores que, com cerca de oito anos, se iniciam nas teias da droga. Não são simples meninos de rua… São astutos, desconfiados, autênticos artistas na arte de roubar e ao mesmo tempo, frios, manipuladores. Criam sistemas de defesa, mas todos, lá no fundo querem o mesmo. O desejo de um dia sair da rua.

Três mil escudos por dia

Robinho (nome fictício) acordou, hoje, no meio de mais nove crianças. Nem sempre é assim. Quando o corpo está cansado, depois de uma caminhada pela noite dentro à procura de droga e, de uma oportunidade para roubar, o rapaz deixa-se adormecer no primeiro passeio que lhe aparece. Mas hoje conseguiu chegar ao chamado “Prédio”, perto do Cartório Notarial, que serve de abrigo a infâncias perdidas. Ali não há lugar para lamechices ou melodramas, todos são adultos à força. Num primeiro piso encontra-se a casa de banho, onde a sujidade sobe pelas paredes, instalando-se como um inquilino desejado. Num segundo andar, o dormitório. Cinco colchões espalhados pelo espaço que acolhem as crianças, os mosquitos, os ratos e o sem-abrigo que “comanda as tropas”. O líder. “Está o dia inteiro a passar droga, mas também a consumir, fazemos tudo o que ele nos manda”, confessa Robinho.
Visto como um protector, o “chefe” ameniza as brigas dentro do grupo, impedindo que os mais velhos batam nos mais novos. Uma autêntica comunidade, onde tudo o que se traz da rua (dinheiro, droga, comida, roupa) é dividido por todos. Contudo, para poderem pernoitar naquele espaço têm de pagar uma taxa, como se fosse uma residencial ou uma pensão. “Tem de se trazer sempre algo”. Apenas há uma regra lá dentro: é proibido roubar.

São 12h00. A ansiedade pela droga favorita, o chamado cocktail (uma mistura de crack com “padjinha”) começa a sussurrar na cabeça de Robinho. A fome também já aperta. Há que colocar mãos à obra para que a ressaca passe. Normalmente, o “dinheiro angariado” é através do peditório nas ruas do Platô, local de grande movimentação, onde “os turistas” são o alvo preferido para a sua “demanda”. Em média, por dia, cerca de três mil escudos vão parar ao bolso do menino de rua. Por mês (a trabalhar de segunda a sexta) consegue cerca de 60 mil escudos.“Os turistas, as pessoas brancas são fáceis de enganar. Quando nos oferecem comida, tento estar atento à espera de uma distracção para, por exemplo, apanhar a carteira ou o móvel. As pessoas de cá já nos conhecem, agora os de fora olham para nós como uns coitadinhos e, assim fazemo-nos de vítimas”, conta.

Várzea, Sucupira ou Achadinha. Escolha diversificada, vários locais onde a venda de droga não é controlada nem vigiada. Basta visitar o mercado mais conhecido da capital e visualizar as transacções em plena luz do dia. Robinho opta por se dirigir à Várzea, “pois a droga do Parque 5 de Julho não é boa. Fazem muitas misturas”. Depois de consumado o acto, o menino de 16 anos, que anda de mãos dadas com a rua há 9, escolhe almoçar no Sucupira, onde as vendedeiras lhe dão comida e, por vezes, roupa em troca de objectos roubados. Alias, o pior inimigo das lojas chinesas são os meninos de rua, que através de um “jogo de esperteza” roubam produtos dos estabelecimentos num piscar de olhos e, sem ninguém dar conta.
Depois do almoço, vaguear pelas ruas, pedir, roubar, preparar-se para chegada da noite. Durante a madrugada, Robinho vagueia pelas ruas à procura de droga, como se tratasse de um louco. E como ele próprio diz a cabeça “já não está boa”.

A história

A mãe de Robinho veio para Cabo Verde, fugida da guerra que assombrava o seu país natal. Quando a paz chegou à Guiné, quis o destino que regressasse mas…sem o seu pequeno. Com cerca de cinco anos, ficou ao encargo da avó e do padrasto que “tinha muitas vacas no Paiol”. Face à convivência com o filho do padrasto que se drogava, começou a consumir. “Fugia de casa da minha avó e ia para lá. Ele punha-me a drogar. Não estava contente com a minha ‘dona’. Ela queria dormir cedo e eu queria andar ao deus dará”, conta.
Pouco tardou para que adoptasse as travessas e ruelas como o seu novo lar. A rua trouxe-lhe verdadeiros “amargos de boca”. Violado por um homem mais velho e alvo constante de discriminação, por ser um menino de rua (o que faz com que carregue um forte estigma social, já que é muitas vezes identificado como um bandido ou um vagabundo), mas também no seio dos meninos de rua, onde é chamado de “mandjaku” nome pejorativo que se dá aos imigrantes africanos.

Contando no currículo com algumas visitas à esquadra da polícia, Robinho explica, como por vezes, os pequenos se tornam informantes. “Se não queremos dizer nomes ou dar informações, batem-nos, dão-nos murros na cara e ameaçam-nos de morte. Tenho uma camisa cheia de sangue”. Uma tese defendida por alguns sociólogos, (estudaram este fenómeno) que admitem existir uma relação de promiscuidade entre as crianças, os adultos criminosos e os polícias. Por outro lado, Robinho faz tudo pelos amigos. “São a minha família”. Para os estudiosos, a associação em grupo surge como uma forma de melhor sobreviverem num espaço adverso, onde tentam substituir aquilo que nunca tiveram em casa. (amizade, cumplicidade). E a verdade é que os grupos protegem-se através de uma solidariedade entre eles, mantendo uma relação estranha, de amor/ódio. Se por um lado, se portegem uns aos outros na relação com o meio exterior, no interior do grupo qualquer coisa pode ser razão para brigas e zangas.
No futuro, Robinho quer ser um homem “grandioso” “ir para a escola e não roubar” mas confessa que só quando a cabeça ficar boa…

“Não quero mais”

A sua figura identifica-o de imediato como um menino da rua. Umas calças de ganga rasgadas, t-shirt dois números acima, cabelo crespo com aspecto deslavado, uns pés descalços, unhas impregnadas de sujidade, com feridas causadas pelas picadas constantes dos mosquitos. “Não tens roupa limpa? E sapatos não tens?” “Tenho sim, mas desta forma as pessoas ainda têm mais pena de mim”. Assim é Pedro (nome fictício), um menino de rua bem diferente dos outros. Não rouba, só pede nas avenidas mais movimentadas da Praia.
“O puto ingénuo” como é conhecido pela sua comunidade de amigos conhece os vícios e as artimanhas da “vida sem regras” desde os oito anos. Neste momento já conta com 16 anos. O pai, polícia de profissão, abandonou a mãe, mais os oito filhos por uma outra mulher. A irresponsabilidade paternal que tanta vezes afecta as famílias cabo-verdianas fez “mais uma vez das suas”. De acordo com as últimas investigações sobre este assunto, a pobreza, violência familiar, insucesso escolar e conflitos com colegas e professores pode levar ao “princípicio” do sub-mundo (toxicodepêndencia, exploroção sexual e agressões). Pedro começou a sair de casa e só a voltar à noite. A aventura valeu-lhe umas boas bofetadas da mãe. Era sempre assim quando decidia fazer o que queria. A escola ficou pelo caminho a acenar-lhe com um “até um dia… talvez”. “Estava sempre em brigas com os meus colegas”.

Foi pelo mar que decidiu ficar na Praia. “Houve um amigo que me desafiou para ir à praia da Gambôa. Nunca tinha visto o mar. Nesse dia ficamos a dormir na rua. Nunca mais sai de lá”. Tinha oito anos.
É dos poucos que, de vez em quando, visita a família, mas não aguenta ficar muito tempo. “Estou viciado na rua”, conta. A droga surgiu como uma consequência natural do dia a dia. Fumou ganza e pedra, sentiu-se acelerado, não havia limite. Hoje, quando os seus parceiros de rua acendem o “cigarro envenenado” ele afasta-se. “Não quero mais”, diz com um abanar de cabeça constante, como se isso fosse uma das suas verdades inquestionáveis. “Os outros meninos consomem muito e andam toda a noite atrás da droga, têm a cabeça dura”.
Da mãe, assassinada há pouco tempo pelo padrasto, não guarda recordações de afecto ou amor. “Sabes o que é carinho? Alguma vez a tua mãe te deu um beijo ou um abraço”. Depois de um silêncio profundo, Pedro baixa os olhos e responde “Não, a minha mãe é pobre…”.

A primeira vez que teve um contacto mais íntimo com uma menina foi ainda na sua terra natal com uma vizinha mais velha, “muito bonita”. Mas agora na rua, o prazer sexual aparece “pintado” de outra forma. No Parque 5 de Julho, espaço que no antigamente era palco de espectáculos culturais, meninas com 19 e 20 anos oferecem favores sexuais em troca de dinheiro para a droga. “Dou 100 ou 250 escudos e faço com elas. Uso sempre preservativo, têm sempre. Todos os miúdos fazem isso”, conta.
Traficantes, prostitutas, polícia, vendedeiras, toxicodependentes, são todos personagens da história de Pedro, mas que nunca assumem um papel de destaque. “Ninguém manda em mim, só faço o que quero”.
De manhã passa o corpo pela água disponível no Parque, lava os dentes com as mãos, pois só quando vai a casa é que tem direito a uma escova e a um pouco de pasta. Não faz “recados” a pedido dos traficantes, mas admite que os amigos servem de pombos correios para transportar droga. “Levam-na de um sítio para outro, não há o risco de as crianças ficarem com a droga, pois sabem se são apanhados a vida termina nesse minuto”, salienta.

Quando o Expresso o encontrou, Pedro já tinha tomado o pequeno-almoço no Sucupira e iniciado o seu peditório pela Avenida Amílcar Cabral. 400 escudos em apenas duas horas. Preparava-se para ir almoçar para depois à tarde dividir o seu tempo em jogar nas máquinas ou a regressar ao Platô. Quando se despediu, uma única frase: “Quando a cabeça ficar boa, quero sair daqui”, Afinal não é o que todos desejam?

Os meninos do Porto da Praia

Noite longa. Não há candeeiros. Só a lua permite visualizar alguma coisa. Pouca. As grutas do cais. Solitárias e sombrias, ninguém arrisca a passar por ali. A fama persegue o lugar. Só eles, é que, durante algum tempo, adoptaram aquela espécie de “lar esconderijo”. Eram conhecidos como os meninos do “pé de rotcha”, os mais perigosos e os únicos que utilizavam armas de fogo. Soldados controlados pelos criminosos que operavam na zona. Durante o dia mantinham-se na sua “habitação”. Dentro dela, cozinhavam, dormiam, faziam as suas necessidades… Tal como os morcegos, durante a noite saíam para o Platô, local onde impera a movimentação, para roubar. Nada escapava às mãos
Em 2006 a “festa” acaba… Todos são presos e os que não são, jamais regressam à antiga casa. Procuram outros líderes, protectores e outros amigos. Sucupira, Várzea ou Achadinha são agora os sítios de eleição.

Dura Realidade

Dois dos critérios escolhidos para ser líder dos meninos de rua são a agressividade e a habilidade para roubar.
Os antigos meninos de rua são também os que vendem droga os chamados “delears” e também lavam carros.
O lucro das suas actividades (lavagem de carros e barcos de pesca, rolamento de bidões, carregamentos de sacos das compras, ajuda na arrumação dos mercados, roubos a pessoas e a residências) são utilizados para as suas necessidades básicas como a comida, droga e roupa.
Segundo alguns meninos de rua, nas épocas festivas, a policia vai buscá-los como forma de os proteger dos mais velhos, como são exemplo, os Thugs, mas também para prevenir que eles assaltem casas ou roubem pessoas. Segundo os últimos estudos, apesar de não haver dados estatísticos oficiais, estima-se que a reincidência crimninal está cada vez mais alta.


In "Expresso das Ilhas"

3 comentários:

Margarida disse...

Muitos Parabéns pela Reportagem. É tão raro ler-se bom jornalismo neste país!
Acredito que tenha sido uma experiência marcante. Também já andei por alguns desses meandros e sei que não é fácil de digerir.

Parabéns mais uma vez. Muito bem escrito.

Anónimo disse...

Pois, Dramatica. Solucoes?

gicas disse...

Escreves muito bem, parabéns.
A reportagem está boa, descreves bem o dia a dia e as "teias" dos meninos de rua e na rua, mas olha que o trabalho não fica por ai...

Conheço bem a realidade que pretendes transmitir sobre estes meninos de rua. Tens a visão inocente de quem ainda traz uma percepção "limpa" e "humana" da realidade destes meninos, eu tinha e ainda tenho essa visão "humana", que me leva a questionar que estes meninos de rua, não passam de vítimas desta sociedade desigual que os obriga a sobreviver e os empurra para a marginalidade.

Os grandes "dealers" atraem estas crianças, que mais tarde se tornam adolescentes, porque são alvos frágeis, fáceis de dominar e enganar.

Mas, infelizmente, já não há praticamente inocência nestas crianças que pedem e roubam para a droga, que se prostituem, que fazem de tudo. Mesmo tudo!

Todas querem sair da rua, mas todas sabem que isso não é possível, não há volta. Entram na malha com a polícia, com os senhores da droga, com a conivência da sociedade.

Mesmo com o ICCA a trabalhar com estas crianças, diariamente, não há volta a dar, e a taxa de sucesso de recuperação é, praticamente, inexistente.

Faz, praticamente, um ano que, também eu, fiz uma grande reportagem com os meninos de rua e na rua. Há uma diferença. Nem todos são "marginais" que buscam o alimento para o único "pão" do dia, "o fumo", como se chama em Cabo Verde. Há os que têm a rua como único lar e há os que mantêm uma ligação com a família.

Margarida há também muitas crianças que trabalham para ajudar os pais, na esmagadora maioria, a mãe, a única figura paternal.

Chegam a casa à noite e têm de entregar dinheiro, senão apanham, ou da mãe ou do, ou “dos” padrastos, companheiros da mãe. Essa é também a realidade. Muitos acabam por não querer voltar a casa, e preferem a liberdade de entrar na vida da "rua", como única companheira, porque não há lar, não há amor, nem carinho, nem apoio. Não há nada para voltar.

Pertencem a famílias desestruturadas, a maior parte começaram desde pequeninos, muitos "obrigados" pelos pais ou familiares com quem vivem, que exploram as crianças e as empurram literalmente para esta vida.

Devias ter explorado o lado das autoridades (in) competentes e ias descobrir muitas coisas, lamentáveis!!!

O sucupira é o maior "centro" de concentração desses meninos, como bem referes e conheço o prédio de que falas...mas olha que na rua não há amizades. Há apenas a lei da sobrevivência e o "Robinho" que eu também conheço, não ia hesitar em matar o amigo do lado por um cocktail. O vício é mais forte, fala mais alto. Domina-os por completo e a solução para o problema parece não ter fim.

O fim da lei da Imputabilidade para menores de 16 anos em Cabo Verde, na prática nada veio mudar ou acrescentar a esta realidade da Praia, do Mindelo, do Sal, do Fogo e a longo prazo da Boa Vista, onde o abismo social caminha nesse mesmo sentido. Há um Centro de Recuperação/Integração – Orlando Pantera, que já na altura que fiz o trabalho estava a funcionar com técnicos pagos e vazio, sem hóspedes. É que depois, tens a questão dos tribunais, que também, acabam por, alegadamente, não funcionar. Na altura a própria “polícia” admitiu que os Tribunais colocavam de novo estes marginais, na rua.

Sou a favor da integração, da reabilitação, não é fácil. E nem sempre, estes Centros de Acolhimento estão realmente capacitados para dar resposta…mas muito mais haveria para dizer.

Continuação de bom trabalho.
Ass: Gisela Coelho